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O causo do torno Jones & Lamson

Desde a pedra lascada, passando pela era do ferro, do bronze, do aço, até chegar às superligas nano granulométricas de metais resistentes ao calor e ao desgaste, o homem tem todo o seu progresso intimamente ligado ao desenvolvimento dos processos de conformação dos metais. Entre estes, poderíamos citar a fundição, o forjamento, a extrusão, o trefilamento, a sinterização, a injeção de materiais e a usinagem. Nesse sentido, também é incontestável a contribuição trazida pelo avanço na área dos tratamentos térmicos e revestimentos de superfícies e da modernização efetuada em máquinas e ferramentas. O aprimoramento da tecnologia tem proporcionado à humanidade grandes realizações, principalmente se considerarmos o desenvolvimento da eletrônica, da computação, da informática, dos satélites de telecomunicação, entre outras conquistas alcançadas também nas demais áreas do conhecimento. Tudo isso permitiu aos seres humanos livrar-se do solo úmido e mal iluminado das cavernas, transportando-os para a luz das grandes cidades, para o topo dos arranha-céus e, mais recentemente, possibilitando a exploração de possíveis novos habitats no espaço.

Analisando como um todo, talvez não se tenha a verdadeira noção dos tantos desdobramentos que esta saga tem proporcionado a cada indivíduo no escopo de sua existência; não apenas como profissional responsável por um determinado posto de trabalho, mas como cidadão, como pessoa de carne e osso, com seus sentimentos, sonhos, realizações, vitórias, decepções, entusiasmos e nostalgias. O olhar singular estendido sobre a inter-relação de um homem com sua máquina pode nos conduzir a profundas reflexões sobre o verdadeiro sentido da vida.

A crônica que segue é do engenheiro Aryoldo Machado, formado pela Escola de Engenharia de São Carlos da USP, turma de 1970. Ele foi diretor técnico de empresas nacionais e multinacionais e, no momento, atua como consultor da indústria metal-mecânica, além de ser representante de empresas de automação industrial. Inventor, tem, pelo menos, duas patentes asseguradas pelo INPI – Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Por meio de sua empresa, a A M Representações Comerciais, Indústria e Comércio de Máquinas Ltda, trabalha com o desenvolvimento de projetos e elaboração de processos no campo da manufatura. O texto impressiona pela clareza e simplicidade, principalmente se considerarmos que partiu de alguém que não tem formação em Letras. Como editores, esperamos que o prezado leitor possa se surpreender tanto quanto nós com tamanha sensibilidade. Boa leitura!

A tristeza que emerge da visão de um conjunto de máquinas paradas.

Dia destes, em visita a uma boa empresa no interior de São Paulo, por coincidência era hora de almoço. Todas as máquinas estavam paradas, ao fundo só se ouvia um ruído de ar comprimido vazando em alguma mangueira, ou em um conector de engate rápido. O gentil empresário que me acompanhava neste “plant tour” (visita às instalações fabris) exclamou: Como é triste ver as máquinas paradas! Concordei e me lembrei neste instante de muitos fatos onde presenciei máquinas paradas por “n” circunstâncias, inclusive por greves, por acidentes, ou pela normalidade dos feriados e horários sem turnos de trabalho. Um empresário, ao perceber as máquinas paradas, sempre pensa na última linha do balanço, “money” (dinheiro), em outras palavras, no resultado operacional da companhia. Eu já vejo também o lado nostálgico, sem nunca deixar de considerar também o lado material, o objetivo número “um” da empresa que é, invariavelmente, o resultado. Mas sem mais delongas, considerando todo esse aspecto administrativo, há um fato que me marcou muito, que é o causo (caso) do tornão fabricado pela antiga JONES & LAMSON, originário dos EEUU. Trata-se da história de uma máquina que um dia deixou de funcionar. Eis o dito caso:

Na época, eu era um gerentão de uma grande empresa com vários departamentos, de usinagem, montagem, soldas e outros que tais. Foi um tempo em que eu exercia funções bem distintas das que exerço hoje como consultor. Minha sala estava em um mezanino, bem em cima de um departamento de usinagem de eixos varões localizadores. Este setor tinha muitos tornos trabalhando direto, em três turnos, e dentre eles o grandão que era um torno revolver, convencional com um antigo aparelho de barras, e que fabricava alguns modelos bem parecidos de pinos que serviam de eixos para engrenagens chamadas de “louca da ré”. Um nome bem curioso para quem não seja familiar aos jargões da indústria mecânica.

No primeiro turno, que começava às 05:00 da manhã, havia um operador, já experiente, não tão jovem, mais laborioso e calmo, com o qual eu tinha mais contato (infelizmente o tempo apagou seu nome de minha memória sem dó). Esse era um apaixonado pela tal máquina e como era zeloso com o seu tornão, pois o mantinha sempre brilhante, lubrificado e fazia questão de ir colhendo os cavacos evitando que acumulassem.

O tornão trabalhava com a matéria- -prima em forma de barras longas, de 4 metros, dispostas no aparelho porta- -barras, sendo que uma delas passava por dentro do eixo árvore para se apresentar ao torneamento. Com o torno girando em baixa rotação, pois nem daria para ser mais rápido por conta do próprio desbalanceamento da barra, a operação propagava um som bonito como um sino em constante tintilar, porém, ao invés do badalo no bronze, a melodia era gerada pelo bater de aço com aço ou com o ferro fundido da estrutura.

Dia e noite eu ouvia e podia acompanhar a produção pelo som. Quando o torno parava, na maioria das vezes, era por problemas de manutenção ou então por falta de planejamento que, por alguma razão, deixava faltar material para o trabalho.

Este torno chegou praticamente com a fundação da empresa nos idos e prósperos anos 50, e já era usado. Vejam, quantos operadores passaram por ele, quantas oportunidades de trabalho estavam naquele posto, naquela máquina? Operadores ganharam seu sustento colocando a peça na placa, torneando, medindo, corrigindo, preparando, retirando as peças e colocando em caixas para a operação seguinte. Por causa dele, o tornão J&L, muita gente teve a oportunidade de se manter, casar, comprar uma casa, dar estudo aos filhos, viajar, poupar, tiveram chance de evoluir para cargos melhores, enfim, viver uma vida com o sustento proveniente daquele trabalho. Cada tilintar era como se fosse de uma moeda sendo colocada no cofrinho do dia a dia, de cada um que estava ali à sua frente, interagindo mutuamente; um com a força de corte, o outro com a força do músculo; um valendo-se do pensamento nascido no cérebro e o outro do movimento gerado por fusos e barramentos. O operador, do qual não me lembro do nome, muitas vezes me disse que, graças aos serviços executados naquela máquina, havia formado os filhos, construído a casa própria e, ainda, se mantinha dignamente.

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Os tornos convencionais carecem do homem para operá-lo, pois eles são só força e não tem computador ou CNC que pense por eles e os dirija. Eles precisam ser dirigidos. Não é como nos tempos de São Paulo quatrocentão, dos idos de 1954, onde as propagandas pregavam “NON DUCOR, DUCO”, ou seja, “não sou conduzido, conduzo”. Este é o aspecto que muitos profissionais não veem: os desdobramentos que se originam de um simples posto de trabalho, os aspectos que tangem a vida, o dia a dia, as alegrias, as frustrações, as necessidades e tristezas de cada pai de família. Quantas vezes o operador tem que entrar no palco do trabalho, carregado de pensamentos e tristezas, vestir “la giubba” (a roupa de trabalho, paletó em italiano), porque o trabalho “must go on“; ou, como diria o poeta, o show tem que continuar; pois é assim que vejo toda essa metafísica, que se origina da interação de cada pessoa, cada profissional postado em frente de cada máquina. Eu, às vezes, em meus devaneios, chegava a imaginar que, talvez, a máquina pressentisse tal situação, como se fosse um ser vivo, e procurava entoar um ruído mais alegrinho para estimular e encorajar seu próprio operador. Seguindo nessa linha, imaginava como ele, o tornão, deveria se sentir mal, caso ocorresse algum acidente ao operador ou a ele mesmo por conta de algum movimento mecânico mal sucedido que pudesse vir a interromper a suave melodia.

Por que estou falando deste torno especificamente, visto que por trás de toda máquina existem histórias semelhantes? Lembre-se de como comecei esse relato. Falava sobre máquinas paradas. Então, por quê? Passado um tempo nesta minha gestão, e devido a uma oportunidade percebida pela alta direção daquela empresa, o setor foi terceirizado. Todo o trabalho foi para o novo empresário, que iria, a partir de então, fazer todas as peças deste departamento e entregar segundo as rotinas da já proliferada técnica do “just in time” (entregas na hora exata da necessidade, seguindo cronogramas flutuantes, acompanhando a volatilidade das demandas). Tudo muito bonito, pois, de novo, isso iria afetar positivamente a última linha do demonstrativo financeiro. A partir de então, nunca mais vi o senhor operador. Tudo foi feito abruptamente, sem que se tivesse, sequer, uma chance para alguma alternativa de realocação de recursos, algum tipo de “overlapping” que pudesse poupar a nostalgia que ora me invade.

Não vou discutir isso, e nem o quero. Todavia, o senhor operador teve de continuar sua vida sem o auxílio musicado do velho J&L. E ele, o velho J&L, por sua vez, em face dos estudos feitos pelo novo empresário, foi silenciado. Ele parou. Suas engrenagens, o aparelho de barras, o motor, a mesa, a espera porta-ferramentas, o castelo porta-ferramenta, todos, enfim, silenciaram para sempre.

Um dia, nós, em companhia de outros profissionais da empresa, fomos verificar em um depósito de um grande leiloeiro de máquinas da região se existia uma máquina sei lá para que, da qual nós estávamos precisando. É um choque, para mim, que não raciocino só em termos de dinheiro, que não vejo o mundo apenas pela perspectiva monetária, ver tantas máquinas desativadas, clamando por seu passado, pela sua anterior interação com humanos, gritando silenciosamente para voltar a rodar, vibrar, cortar, soldar, pintar, dobrar. Creiam, é um choque!

Naquele amontoado de máquinas sem vida, nem ruído de ar comprimido vazando tinha. Nada, só poeira e silêncio. Todas elas mortas para dar vazão ao prodigioso progresso.

Como é triste ver máquinas paradas! De repente, me vi envolto em teias de aranha, poeira, sucatas ao redor e, para o meu espanto, lá estava ele, o velho amigo, o querido TORNÃO J&L. Meu Deus! Emocionei-me! Contudo, ninguém percebeu minha furtiva lágrima e, se viu, imaginou ser apenas um cisco no olho. Se eu pudesse, eu o abraçaria e ficaria ali horas ouvindo suas histórias. Eu fui embora e ele ficou no seu silêncio. Isso me acompanha e vai me acompanhar sempre. Adeus velho J&L.



There are 8 comments

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  1. João Batista

    Gostaria de fazer um comentario bem singelo em cima do que eu li hoje, eu nunca parei para pensar nessa história, que tirsteza saber que essa é realidade da atualidade, onde o novo, o moderno , chega e modifica todo um arsenal que fez uma história. Vivemos um mundo de guerra de informações e tecnologias, progresso esse que encanta o mundo, porém se olharmos com os olhos dessa história , é até lamentavel que tudo isso aconteça. O progresso deveria vir para cherar oportunidade pra todos. Dar dignidade pra todos, mas infelizmente quem nao estiver preparado para o mundo globalizado e moderno vivera um grande pesadelo que tirara o sono e a vontade de prosseguir. Esse tornãoe assim como muitas maquinas que criaram oportunidade e progresso, se pudesse falar ou pensar diria:para que eu sirvo hoje, se nao sou tão capaz quanto aquele CNC. Assim é o homem de hoje que nao evoluiu e envelheceu, vive um pesadelo da modernidade.

    Progresso ou Pesadelo não sei definir.
    João Batista

    • Aryoldo Machado

      Sr. João Batista. Muito bom ler seu comentário. Depois de tudo que já escrevi, só tenho que acrescentar que cada um de nós que convivemos neste ambiente de trabalho de hoje é de estarmos preparados e nos preparar cada dia pelos novos desafios e dificuldades. E devemos superar.

  2. Marcelo Ramos

    Estilo de leitura leve, divertida e contagiante!

    Cara, que texto legal.

    Ao mesmo tempo, debatendo carros-chefes do passado que dão certo até hoje e as inovações tecnológicas mais que instantâneas.

    Muito bom mesmo, parabéns!

    • Aryoldo Machado

      Sr. Marcelo Ramos.
      Muito resumidamente posso dizer que ambiente que nos envolve dentro de uma manufatura é tão cheio de detalhes, tão vasto, e o que procurei foi trazer nesta história real foi uma face destes acontecimentos, que muitos passam e não percebem esta imensidão de fatos, vidas e interação. Este texto também é a tentativa de mostrar a importância do trabalho ao homem e a maior importância ainda do homem ao trabalho.
      Muito obrigado pelos seus comentários.
      Aryoldo Machado.

  3. Gilmar

    Prezados venho prestar o meu singelo respeito e admiração pelo texto acima. A modernidade nem de longe vai tirar os Tornos convencionais de uso. O termo “just in time” nem sempre no chão de fábrica se torna uma realidade devido a diversidade de manufaturas.

    • Aryoldo Machado

      Caro Gilmar.
      Obrigado pelo comentário. Quem vive na manufatura conhece os emaranhados do dia a dia, e a diversificação que o Sr. cita em seu comentário.
      Por certo sempre buscamos fazer o melhor.
      Aryoldo Machado.

  4. José Eduardo Querido

    Pois então Véio Aryoldo, depois daquele texto deixado na lousa do intervalo do curso da EESC sobre a então novidade dos idos de 78 (CNC Aplicado a Máquinas Ferramenta de Usinagem), quando quase que profeticamente dizia que “os empregos perdidos devido a essa nova técnica ainda brandiriam sobre nossas cabeças”, vejo agora esse seu nostálgico texto que também me reporta a um outro causo, que eventualmente poderá ter acontecido na mesma empresa do velho J&L :
    – O dedicado operador de um grande torno que trabalhava também quase que ininterruptamente, se viu também de repente às voltas com uma das novas técnicas de otimização dos tempos de operação, lançado sem mais explicações na operação de um banco de máquinas com dois dos tais tornões um frente ao outro. Supostamente o operador deveria carregar uma máquina enquanto a outra desenvolvia a usinagem e assim sucessivamente de modo a se ganhar eficiência reduzindo bastante o tempo “morto” de carga da operação… Qual não foi a surpresa do Sr. Encarregado quando se deparou com o dito operador carregando uma máquina e esperando por seu ciclo completo para então desligá-la e partir para operação da outra à sua frente ao invés de operá-las simultaneamente. Arguído sobre sua atitude o Operador sem mais delongas respondeu ao Encarregado que não mudaria sua postura até que sua Função descrita na Carteira Profissional fosse retificada de OPERADOR para então nova função de CO-OPERADOR (sic)!!!
    Um abraço.
    Eduardo Querido

    • Aryoldo Machado

      Caro Eng. Querido. Desde nosso curso de ESPECIALIZAÇÃO EM ENGENHARIA DE FABRICAÇÃO na EESC USP, coordenado pelo Professor Rosalvo Thiago Rufino, em 78 praticamente não nos vimos mais. O tempo voou e esta história que contei nos ligou nestes comentários. Lembro-me da poesia que você fez em cima do fato evidente de que a automação vinda pelo CNC iria desocupar muitos postos de trabalho, assim como a informática eliminou muitos postos de trabalho dos bancários, das telefonistas que enfiavam pinos em conectores para completar ligações. Quando trabalhei em banco, BANCO MERCANTIL NOVO MUNDO S.A, em 1958 e 1959, a agência de Boa Esperança do Sul tinha quatro funcionários, gerente, caixa, contador e oficial atendente e eu jovenzito, nas funções de limpeza, mas como era exímio datilógrafo fazia muitos serviços dos grandões. Tudo era feito em máquina de escrever com carbono copiativo, para se copiar o diário, levar na coletoria, recolher estampilhas. Isso para atender na época não mais do que 50 correntistas. Hoje a máquina atende milhares e dá conta e não erra. Não adiantou você bradar evidenciando o que viria. O futuro veio o CNC que na época ainda era o CN, pois o CNC estava começando, veio para abranger todos os segmentos da manufatura, não só na usinagem, mas em todos os segmentos fabris. Impressionante. Com relação ao que você contou do co-operador o próprio mentor da manufatura moderna Sr. Shigeo Shingo tinha essa multiplicidade de funções em seus conceitos. Evolução diria! A própria Administração Científica do emério Sr. Taylor, os Terbligs buscavam a produtividade, eliminação de desperdícios, movimentos precisos. O CNC cobriu todas essas teorias com recursos da informática digital. Grande Mr. Parson que lá nos anos 40 concebeu a magnífica idéia para fazer pás dos helicópteros e deu a grande oportunidade para o MIT criar o dito equipamento. Isto em 1949. Eu tinha cinco anos. Vamos ficar por aqui, porque se estendermos muitas outras históra virão. Apareça um dia, que será super bem recebido aqui em S.Bárbara d´Oeste. Como será bom! Abraços a todos leitores e a você também Prof. Dr. Marcondes que abriu essa oportunidade de contar esta história do J&L, e além de tudo meu grande AMIGO.


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