Como o ensino da engenharia tem evoluído no campo da manufatura?
Para falar sobre a evolução do ensino da engenharia nesse campo, Manufatura em Foco entrevistou um dos grandes pesquisadores do tema no Brasil, o professor Nivaldo Lemos Coppini.
Uma das grandes áreas da manufatura é a usinagem. Para falar sobre a evolução do ensino da engenharia nesse campo, Manufatura em Foco entrevistou um dos grandes pesquisadores do tema no Brasil, o professor Nivaldo Lemos Coppini – Doutor em Engenharia Mecânica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na qual trabalhou por muitos anos e chegou à Diretoria do Centro de Tecnologia da entidade, entre outros cargos importantes. Como docente e pesquisador, ele realizou uma série de visitas e estágios de curta duração em diversas instituições internacionais Americanas, Inglesas, Alemãs, Espanholas e Japonesas. Atualmente, é professor pesquisador do Centro Universitário Nove de Julho junto ao Departamento de Ciências Exatas, vinculado ao Curso de Engenharia de Produção Mecânica e ao Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção. Foi professor Titular da Faculdade de Engenharia Mecânica e de Produção da Unimep – Universidade Metodista de Piracicaba por vários anos e presidiu a ABEPRO – Associação Brasileira de Engenharia de Produção, na gestão 2002/2003.
MF – Quais foram os grandes eventos que interferiram na elaboração dos cursos e no planejamento das aulas de engenharia da manufatura ao longo de sua carreira como docente?
Para responder à essa pergunta de modo adequado, poderíamos falar por muito tempo e ainda correr o risco de deixar algo importante para trás. Sendo bastante direto, os currículos dos cursos tiveram que ser modificados devido aos grandes avanços da ciência e da tecnologia. Somente como um exemplo bem ligado à minha pessoa, os professores de usinagem, no início de minha carreira, ensinavam usinagem e utilizavam como base o que ocorria em máquinas convencionais. Hoje falo em máquinas convencionais na minha disciplina praticamente como exemplo histórico, pois trato do assunto tendo como base Máquinas de Comando Numérico. Estas surgiram graças aos desenvolvimentos em materiais, eletrônica e computação. Estes desenvolvimentos provocaram uma cascata de implicações relacionadas com o nosso assunto. Outro aspecto que impactou os programas e o planejamento das disciplinas em geral foi a necessidade de formar pessoal com especialização mais vertical, gerando cursos com menor número de horas/aula ou cursos com subdivisões dos anteriores. Esta foi uma demanda da sociedade que levou o MEC a tomar uma atitude. Apenas como exemplo pode-se citar a redução de horas/aula dos cursos de maneira geral e no caso de Engenharia Mecânica, a formação de cursos específicos de Processos de Fabricação, Automação e Controle, Qualidade e outros.
MF – Esses eventos que ocorreram vieram de fora para dentro da universidade ou de dentro para fora?
Coppini – O processo geralmente ocorre por anseios criados pela sociedade no sentido mais amplo desta palavra. Diante disto, empresas, universidades e centros de pesquisas, cooperativamente ou não, realizam os desenvolvimentos, pois, afinal de contas, esta é a rotina dos mesmos. Acho que um exemplo, inclusive fora de minha área, é bastante esclarecedor: os médicos, a alguns anos atrás, tinham a necessidade de observar problemas nos sistemas digestivos de seus pacientes. Faziam isto através de raio X, que nem sempre atendia com precisão as informações de que precisavam. Bem, atualmente os médicos utilizam um processo chamado de endoscopia, que permite não só examinar todo o espaço entre a boca e o duodeno, mas também fazer pequenas cirurgias em uma série de problemas encontrados durante o exame endoscópico. A consequência disto é que as escolas de medicina passaram a ensinar o manuseio destes aparelhos, incluindo este assunto em seus programas de cursos e no planejamento de disciplinas voltadas para este problema. Se eu pegasse hoje o planejamento de minha disciplina, provavelmente teria em comum àquele que eu utilizava há alguns anos apenas as partes fundamentais e conceituais que, provavelmente, não irão mudar com facilidade. Tudo que eu pesquiso, incluo nas disciplinas de graduação e pós-graduação que leciono.
MF – O senhor é membro de um seleto grupo de professores e pesquisadores que procura aproximar a teoria da sala de aula à prática da indústria. O que o levou a esse perfil híbrido?
Coppini – Na verdade, eu não tenho um perfil tão híbrido assim. Em minhas andanças pelas indústrias, sempre busquei um relacionamento mais como professor pesquisador, do que como profissional interessado no estilo de trabalho dos engenheiros industriais que trabalham no setor produtivo empresarial. As cooperações que consegui estabelecer nunca foram de grande impacto. Tenho colegas que têm um relacionamento muito forte através de convênios de cooperação. Estes convênios começam a existir com maior facilidade no Brasil, mas estão ainda muito baseados em empresas do tipo de uma Petrobras ou Embraer. Empresas de origem transnacional ou multinacional ainda realizam P&D em seus próprios países. Este é um assunto que somente o tempo poderá resolver de forma mais definitiva. Acredito que a fórmula para dar certo tem que passar pela ocorrência de interesses mútuos muito fortes. Enquanto isto não ocorre, de modo geral, as empresas irão sempre preferir agir como a galinha no café do americano, que apenas se envolve contribuindo com o ovo, e nunca como o porco, que compromete a própria vida para proporcionar o bacon.
MF – Aparentemente, há uma grande diferença entre o engenheiro clássico dos anos 60 e o engenheiro de tempos mais recentes. Atualmente, softwares e hardwares facilitam tudo, porém podem tornar os engenheiros mais práticos do que pensadores. O que o senhor poderia dizer sobre isso?
Coppini – A qualidade do ensino, de maneira geral, está cada vez pior. Não preciso apontar uma referência bibliográfica para sustentar esta frase, pois este assunto é de domínio público. A culpa não é da existência de recursos como softwares ou hardwares. Podemos voltar ao assunto do médico durante a endoscopia: de que adiantaria o domínio da técnica se, ao observar o paciente, o médico não tiver discernimento entre um pólipo inofensivo de um tumor cancerígeno? Assim, o que falta para o estudante de hoje, qualquer que seja a sua área de formação, é o interesse em aprender os conceitos. Para nós, engenheiros, além da física, da matemática, dos materiais e da química, resta somente a tecnologia para completar nosso conhecimento e sabemos que esta muda rapidamente, porém os conceitos se perpetuam. Tenho observado que muitos formandos de engenharia realizam tarefas que geram resultados, porém sem muita consciência dos porquês de tais ocorrências. Por experiência, minha impressão é que estamos mais perdendo do que ganhando à medida que não dominamos os conceitos básicos.
MF – Aparentemente, a maioria dos jovens de hoje sonha com uma carreira de colarinho branco em um escritório com ar-condicionado, perto de uma máquina de café expresso e próximo a um Shopping Center. Poucos gostariam de se meter em uma planta produtiva, próximo ao calor das máquinas. Para que o país realize o sonho de se tornar a 5ª economia mundial, na próxima década, pesquisas apontam que o número de egressos no campo da engenharia deveria ser cinco vezes maior. O senhor acredita que falta dar mais visibilidade à importância da engenharia para os jovens?
Coppini – Quem não gostaria de ter tais mordomias? Contudo, temos de levar em conta que as vagas para os cursos de engenharia são limitadas! Além disso, muita gente desiste por ficar abaixo da nota de corte nos vestibulares, ou seja, há o desejo, mas os candidatos não conseguem passar pelo exame de qualificação.
MF – Embora haja vários congressos nacionais de engenharia, a participação de profissionais da indústria é irrisória. Muitas pesquisas são feitas, mas nem sempre sondando as reais necessidades do mercado. Em sua opinião, o que poderia ser feito para promover maior integração entre universidades e indústrias?
Coppini – Não tenho uma resposta boa para esta pergunta. Fui a um congresso no Rio de Janeiro e estava participando de uma sessão sobre “Cooperação Universidade Indústria”. Depois de muita discussão, comecei a ficar incomodado e pedi ao coordenador da sessão se poderia fazer a seguinte pergunta a todos os presentes: Quantos dos senhores são da indústria? Foi muito interessante porque somente uma pessoa levantou a mão! Era justamente a pessoa que estava lá para apresentar, comigo, trabalhos que havíamos desenvolvido em cooperação. Na verdade, estávamos fazendo um monólogo sobre o assunto da sessão. Muitos anos se passaram e tenho a impressão que este cenário não mudou muito. Muitas pesquisas são feitas sem sondar as reais necessidades do mercado, porque o pesquisador tem que pesquisar! Faz parte da obrigação dele produzir pesquisa, caso contrário ele perde o emprego. A ausência do pessoal da indústria nesses eventos se explica pelo fato de o engenheiro industrial não ter tempo para sair da fábrica e participar de um congresso. Se ele não der conta de sua rotina de trabalho, ele também perde o emprego! Contudo, se houvesse maior proximidade, ambos poderiam se beneficiar, pois o profissional da indústria tem problemas para resolver e não tem tempo para pensar, enquanto o profissional do ensino tem tempo para pensar, mas nem sempre atua nos problemas que mais afetam a indústria. Falta diálogo entre as partes.
MF – Não sei se já existe isso, mas me parece que tão importante quanto integrar o interesse da indústria aos programas de cursos de engenharia, seria também integrar as grades de ensino superior às grades de ensino técnico de grau médio. O senhor concorda com essa afirmação?
Coppini – Minha opinião sobre isto é que tal integração não deva existir. São formações com características muito diferentes. O técnico não é formado para tomar decisões, nem elaborar planos estratégicos depois de formado. Os engenheiros não são formados para operar máquinas. Portanto, qualquer entrelaçamento entre o ensino destes níveis soa estranho para mim. Posso até estar errado e se for provado o contrário aceitarei. Talvez um técnico fazer o curso de engenharia fosse uma boa ideia!
MF – O senhor atua há muito tempo no campo da engenharia mecânica. Quais as principais tendências das pesquisas atuais, ou seja, o que tem sido objeto de estudo mais frequente de pesquisa em usinagem nos últimos anos?
Coppini – Vou responder na amplitude de minha especialidade. Nossos colegas pesquisadores de usinagem têm dedicado muita atenção a assuntos relacionados com desempenho de ferramentas no corte de ligas exóticas que contenham Níquel, Titânio etc. Dedicam-se, também, a estudar o desempenho de ferramentas em operações diferentes do torneamento, talvez pela menor frequência destas nas publicações. Estudos sobre aplicação de Mínima Quantidade de Fluídos também estão muito presentes no interesse de nossos colegas. Particularmente, venho me dedicando a aprofundamentos relacionados com a gestão do processo de usinagem e sua inserção nos sistemas produtivos. Recentemente, um profissional da indústria de ferramentas falou que um avião do porte de um Boeing precisava de algo em torno de mil pastilhas de metal duro para ser construído. Eu perguntaria, em contraposição, quantas pastilhas seriam necessárias para produzir eixos, caixas de câmbio e outros componentes da indústria automobilísticas em escala mundial. Por isto, minha preocupação é verificar o quanto se pode render e economizar, sabendo que a escala de produção para esses bens é tão elevada em nosso país.
MF – O senhor, com certeza, deve se orgulhar de ser engenheiro. Quais são os principais motivos para essa satisfação?
Coppini – Mais do que engenheiro, eu me considero um estudioso do assunto de minha especialização. Formei-me em engenharia mecânica e me contaminei com um lado da engenharia de produção ligada à gestão dos processos de usinagem. Na verdade, eu fazia mais engenharia de produção do que mecânica nos vinte e cinco anos de Unicamp. Sinto que não preciso fazer uma pesquisa de mercado para saber se a indústria quer ser improdutiva ou praticar custos altos. A resposta, para mim, é evidente. Se a indústria utilizar os conhecimentos que gero, ficarei muito feliz. Caso não se interesse, ficarei com pena dela. Entretanto, mais do que orgulho, eu sinto gratidão pela profissão que abracei: “engenheiro professor pesquisador”. Fazendo isto, eu criei e mantenho uma família de fazer inveja!
MF – Que conselhos o senhor daria ao jovem estudante de engenharia?
Coppini – Se puder, estude com afinco todos os anos que estiver na escola em qualquer dos níveis. Aprenda os conceitos e entenda como eles se encaixam na tecnologia de ponta do momento. A tecnologia vai mudar, mas os conceitos vão continuar explicando as novas coisas que passarem a fazer parte do dia a dia. O ideal seria não trabalhar enquanto estiver estudando. Porém, se não puder e tiver que trabalhar enquanto estuda, estarei torcendo para que consiga fazer, pelo menos, uma parte daquilo que os que só estudam deveriam fazer.
MF – Muito obrigado pela entrevista!
Coppini – Quem agradece sou eu e, além disso, fico muito honrado em ter sido escolhido para esta entrevista. Espero ter contribuído.
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Muito esclarecedora a entrevista. Realmente os jovens não têm interesse na parte conceitual infelizemente, como o Professor diz, os conceitos sempre explicarão as coisas novas.
Obrigado!
meu caro Copini,
apreciei muito suas respostas.
quando voltaremos a bater um papo a respeito?
abraços,
marco