A Paixão Futebol
“Confesso que o futebol me aturde, porque não sei chegar até o seu mistério” – Drummond.
Com popularidade aclamada, o futebol é assunto consagrado pelas esquinas e bares do país. Nenhuma novidade, afi nal, Nelson Rodrigues já dizia que “o boteco é ressoante como uma concha marinha. Todas as vozes brasileiras passam por ele”.
Enfim, a trajetória desse esporte, decifrada por cientistas sociais e historiadores, elucida sua grande relevância.
José Paulo Wisnik aponta que: “Para o bem e para o mal, uma das maneiras pelas quais o país se fez ser foi o futebol”.
O envolvimento popular abrasivo refl ete-o nas artes, na questão racial e em teorias sociais. Movimenta o cotidiano das camadas mais baixas às mais altas da estrutura social e afi rma-se como um ponto de encontro da sociedade brasileira. Diria Ariano Suassuna: “Somente o futebol é que verdadeiramente mobiliza a paixão do povo brasileiro” – em “Ludopédio”.
Transcorrido mais de um século de entrelaçamento desse esporte com o dia a dia, episódios importantes não faltam.
Abordá-lo com eixo na atmosfera sombria da ditadura ou sob o aspecto dos avanços raciais é algo cativante. Ambos são fatores que, aliados aos títulos conquistados pela seleção, cooperam para consolidar o forte sentimento pátrio em torno de si.
No século passado, especialmente na primeira metade, pairava pelos ares do país o complexo de vira-latas, simbolizando a imagem ruim que o brasileiro fazia de si mesmo em relação a outros povos. A derrota em 1950, na fi nal contra o Uruguai, amplifi cou essa imagem, logo insegurança e pecado emocional se intensificaram.
Porém, ainda na década de 1930, após uma era na qual se destacou Arthur Friedenreich, Leônidas da Silva afirma- -se como ídolo. Símbolo do futebol bem jogado, o “Diamante Negro” foi o primeiro brasileiro a conquistar a artilharia de uma Copa do Mundo. Nesse período surgiam indícios de um forte sentimento popular atrelado a esse jogo. Já era tendência o simbolismo de que o jogo aqui praticado era artístico, insinuante, belo, evocando diferenciação do brasileiro em relação a outros povos, especialmente o europeu. Mas ainda faltava a grande afirmação, que só viria com títulos. A síndrome do derrotismo, aliada ao preconceito, atingiu a cúpula diretiva que deixou de convocar negros para as Copas. Estes, estigmatizados, voltaram na copa de 58, conquistando o primeiro título para a amarelinha. Uma constelação negra formada por Pelé, Garrincha, Didi, Vavá, Djalma Santos irrigados de arte nas pernas, afirmou o país como futebol arte. Com as conquistas (58, 62 e 70), o complexo de vira-latas, evidentemente, reduziu-se; enquanto o amor, o amplo envolvimento sociedade/ futebol, afirmou-se de maneira ímpar.
Todos esses desdobramentos cooperam para o fortalecimento do futebol como paixão nacional. Seu aspecto lúdico estava inconscientemente reunido ao conceito “gostar de futebol”, embora, talvez, fosse sobrepujado por outras características como, por exemplo, o nacionalismo.
De matiz democrático, o futebol no Brasil do dia a dia tornou-se mescla de esporte, paixão e arte. Diversão para todos: magros, gordos, mulheres e crianças, enobrece um vínculo que não pode fugir aos olhos: a ludicidade. Motivado pela poesia, pois o que é lúdico é também poético, o futebol é dessas coisas às quais nos habituamos desde criança. Entranha-se como se ligado à pele.
Leonardo Affonso de Miranda Pereira, historiador, ao tempo em que o desmistifica como esporte de elite aponta razões de sua popularização. Os esportes em voga no início do século XX (remo e corrida de cavalos) eram excludentes, pois exigiam dinheiro e estrutura. “Na rua, até uma laranja servia como bola para quem quisesse jogar futebol. E assim, era no qual os torcedores também eram jogadores”.
Essa capacidade de se tornar popular, fruto também da mínima necessidade de utensílios para sua prática, coopera para torná-lo tão simbólico quanto genuinamente é. Claro está que o futebol não corre à margem da sociedade. É claro, também, que o brasileiro sofre por este jogo. É paixão de tamanha volúpia que parece obra dos deuses!
A perda de uma simples partida é capaz de gerar um curto-circuito na rotina dos mais apaixonados. Para estes, a simples partida é algo inaplicável! Sabor e clima de decisão são latentes. A eles, poderia até ser criado um jargão do tipo: todo jogo vale título.
Uma amostra da forte influência futebolística cotidiana consta no clássico “O negro no futebol brasileiro”, no qual Mario filho (que dá nome ao Maracanã) faz menção à derrota do Brasil em 1950, da seguinte forma: “[…] quem mais perdeu foi o brasileiro que não jogou, do que o que esteve em campo”.
Para o antropólogo Roberto DaMatta, “o futebol nega o utilitarismo dominante, promove um efeito de pausa, feriado ou descontinuidade com a sofreguidão exigida com a lógica do lucro, do trabalho e do êxito a todo custo”. (DaMatta, 1994, pag. 11). Ou seja, mais um motivo para tamanha identificação com as massas.
Embora o ambiente futebolístico seja, por vezes, um palco para desavisados, um meio para insensatas guerras nacionalistas e conflitos irracionais, nada disso converte em poeira sua importância.
Já não vivemos o auge criativo de outros tempos, tampouco a magia que consagrou- nos como futebol arte, mas, ainda assim, a aura mística que o transformou em paixão parece prevalecer pelos ambientes que ressonam as vozes do povo.
O historiador Johan Huizinga, no livro Homo Ludens, retrata a natureza e o significado do jogo:
“Por que uma multidão imensa pode ser levada até ao delírio por um jogo de futebol?”. A intensidade do jogo e seu poder de fascinação não podem ser explicados por análises biológicas. E, contudo, é nessa intensidade, nessa fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a característica primordial do jogo (…)”.
Na crônica “Freud no futebol”, Nelson Rodrigues aborda a importância do psicanalista. Traçando um paralelo com a vida real, pode-se imaginar que, para significativa parcela da sociedade, o futebol funcione exatamente como terapia, uma análise regida por 22 jogadores terapeutas mexendo com múltiplos sentimentos: amor, paixão, raiva, alegria, vaidade, ego. Que assim seja, desde que movimente os sentimentos mais saudáveis. Por que não diversão, poesia e ludicidade? Em mundo de calamidades coletivas, esse deveria ser o ponto principal, o gol de placa.
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